Três meses após o incêndio que matou os irmãos Kauã e Joaquim, em Linhares, o jornalista André Vinicius Carneiro, da Rede Vitória, conversou com exclusividade com uma jovem que morava com o casal Georgeval Alves e Juliana Sales, e as crianças. Ela falou com detalhes sobre a rotina da família, a noite do incêndio e as supostas agressões nos irmãos.
Kauã, de 6 anos, e o irmão Joaquim, de 3, foram mortos em um incêndio no dia 21 de abril. O pai de Joaquim e padrasto de Kauã, George Alves, foi preso, acusado de estuprar, agredir e queimar as crianças ainda vivas. A esposa dele e mãe das crianças, Juliana Sales, também está presa, por omissão, segundo o Ministério Público do Espírito Santo, no caso da morte dos filhos.
– Vinda para Linhares
“Eu vim para Linhares com um ex-namorado, um amigo de infância dele [do Georgeval]. Ele chamou a gente para conhecer aqui, porque onde a gente estava não era bom de trabalho. Eu vim mais pela vontade de conhecer o lugar. A gente não veio com pretensão de morar, mas de conhecer e se arrumasse trabalho a gente ficaria, e acabamos ficando. No caso eu permaneci e ele foi embora. Eu fiquei mais, porque já tinha começado a trabalhar. Estava em experiência. Eu tinha que esperar os três meses, só que aí eu decidi morar aqui”.
– Como conheceu Georgeval e Juliana
“Eu conheci através de um menino que eu fui morar. Era um amigo meu e morava mais dois rapazes. Um conheceu a igreja e foi para um encontro que a nossa igreja tem. Na volta do encontro dele eu como morava com ele, a gente se tinha como família, e eu fui representar a família dele, foi quando eu conheci a igreja e permaneci lá”.
– Primeiro contato com o casal
“Eu fui no culto normal. Depois de alguns cultos eu me batizei, pois queria mudar de vida. Aí decidi ficar na cidade”.
– Mudança para a casa de Georgeval e Juliana
“Depois que esse meu amigo conheceu a igreja, ele foi morar com o pastor Georgeval. Depois de um tempo, ficou só eu e o outro menino. A gente brigava muito. Foi quando eu falei que ia embora, pedi onde eu trabalhava para me mandarem embora e eu ia voltar para onde eu morava. Eu estava passando um período muito difícil, com depressão e foi onde o pastor me ajudou e me levou para morar junto com ele. No caso, com o consentimento da pastora [a Juliana]. Eu fiquei um ano e alguns meses morando com eles”.
– Rotina do casal
“Os dois tinham a gente como filhos também. Em momento nenhum eles tratavam a gente com diferença. Tudo que as crianças tinham a gente tinha. Eles sabiam que a gente não era filho de sangue, a gente também sabia que eles não eram nossos pais de sangue, só que eles tinham a gente como filhos. A relação dele com a gente era de pai e a relação da pastora também era de mãe. Era bem tranquilo a nossa relação, graças a Deus”.
– Relação com os filhos
“Quando eles iam fazer alguma coisa e não podiam levar as crianças, a gente ficava com eles [as crianças], e quando eles queriam também, pois eram bem apegados a gente”.
– Relação do casal
“Era tranquila. A relação era bem familiar, tanto das crianças com os pais quanto dos pais com os filhos”.
– Mudança recente para a casa do incêndio
“Tinha 30 dias. A gente mudou para lá no dia 21 [de março]. O momento que a gente morou lá, o mês, foi o momento que a gente mais estava feliz, o momento que a gente mais vivia como família. Estava todo mundo próximo, pois só tinha a gente. Foi o momento mais tranquilo que eu acho que a gente viveu”.
– Noite do incêndio
“Eu estava em um workshop de dança, em Teófilo Otoni. Eu estava no quarto com a pastora, eu e mais duas meninas. O telefone tocou, eu já estava dormindo. Isso foi de madrugada. A menina atendeu e passou para a pastora. Eu não sei quem era, pois eu estava dormindo. Não sei se era o bombeiro ou se era o pastor. Até então a gente tinha achado que havia pegado fogo na casa toda, que assaltante tinha entrado na casa. A gente não sabia ao certo o que tinha acontecido”.
– Reação da Juliana
“Ela ficou muito desesperada no momento. Ela entrava no banheiro do quarto do hotel que a gente estava e saia. Ela chorava, ela olhava o filho mais novo e falava dos filhos. Falaram que a casa tinha pegado fogo, mas ninguém falou que foi só no quarto. Ela queria saber muito dos meninos. Ela perguntava dos meninos e a gente falava que era para olhar nos armários da casa, porque do lado de fora tinha dois armários que cabiam eles dentro. A gente falava que eles eram muito espertos e poderiam se esconder. Ela ficou desesperada. Ela gritava, ela chorava, queria saber das crianças, mas ninguém falava nada. Ela não ficou sabendo lá. Uma pastora buscou ela e trouxe para Linhares. Quando estava chegando, eles falaram para ela sobre o que tinha acontecido. Eu e a menina só voltamos no domingo, pois estávamos de van e tinha meninas de outras cidades com a gente. Não tinha como voltar antes”.
– Culto um dia após incêndio
“Quando a gente chegou, no domingo, fomos direto para o culto. Isso já era mais de 20 horas. Eu lembro que eu fiquei muito desesperada, pois ainda não tinha caído a ficha sobre os meninos. Foi bastante constrangedor o clima que estava. Tinha várias pessoas chorando. Eu não conseguia entrar na igreja. A meninas chegavam para mim e falavam que precisava entrar para falar com a pastora e com o pastor. Eu entrei, abracei a pastora e ela estava muito mal. Depois eu fui até o altar e abracei o pastor e voltei para fora. O culto acabou e eu não lembro o horário”.
– Emoção do casal no culto
“Eles estavam muito mal, principalmente a pastora. O pastor estava tentando se manter forte, só que eu por conhecer e saber quem ele é, eu sabia o quão ele estava destruído por dentro”.
– Prisão de Georgeval
“Eu estava na casa da irmã da pastora, a qual eu moro hoje, e ela nos acordou falando sobre o que tinha acontecido. Estava todo mundo mal na casa, ela também estava muito mal pela situação”.
– Contato com Juliana após prisão de Georgeval
“Eu tive contato com ela onde ela estava. Eu ia visitá-la e ver o bebê, pois eu sou bem apegada a ele e ele é bem apegado a mim também. Chegou a acontecer coisas na minha vida que eu fui tratar com ela, conversar com ela, pois eu a tinha como mãe. Ela não entrava em detalhes no assunto [do incêndio], não falava sobre ele [o Georgeval], só falava sobre as crianças. Ela falava que queria que a nossa família se juntasse. Ela sempre lembrava das crianças, pois ela ainda não acreditava no que tinha acontecido”.
– Ameaças por morar com o casal
“As pessoas falavam sobre eu e a outra menina que morava na casa, diziam que a gente era amante do pastor e que no momento que tudo aconteceu, a gente estava na casa. Falaram que por ele ter saído de cueca, estava tendo relação com a gente. Ficaram ameaçando também, que se vissem a gente na rua iam jogar pedra. Eles queriam mesmo fazer alguma coisa com as próprias mãos. Eu e ela ficamos quase um mês sem sair de dentro de casa. A gente não falava nem para as pessoas da igreja onde a gente estava com medo de acontecer alguma coisa. Não comentamos sobre isso. Até a pastora mesmo ficou sem sair de casa, porque também estavam a ameaçando por achar que ela tinha culpa de algo”.
– Prisão da Juliana
“Eu estava em casa e a irmã dela também que me avisou do acontecido. Até então eu estava sem contato com ela, pois eu estava sem celular. Fiquei bastante mal, por saber quem ela é, saber a mãe que ela era, saber o quanto ela sofreu ao saber da notícia e o quanto ela sofria antes com a perda da filha dela. O que mantinha ela forte era o filho mais novo dela. Eu fiquei muito mal, pois eu esperava que tudo pudesse acontecer com ela, principalmente por ficar longe do bebê. Ela amava ser mãe, amava amamentar”.
– Ida de Juliana a Minas Gerais
“Ela foi se tratar, porque aqui ela não estava bem e os familiares ajudavam, mas ela se sentia muito pressionada, pois não podia sair de casa. Ela chegou a tomar remédios para não ficar como ela estava”.
– Três meses da morte dos irmãos
“Eu nem me pergunto o que aconteceu, mas tento buscar a verdade de que eu não vou ver mais as crianças. A todo momento eu espero que as crianças cheguem aqui, que elas estão viajando. É bastante complicado. Eu não penso no que aconteceu, pois eu não estava aqui. Eu não fico tentando buscar isso, eu só quero que tudo se resolva logo. Eles eram crianças muito especiais. Eles sempre foram muito maduros e nós como adultos queríamos ser como eles, pois eles entendiam sobre Jesus, eles falavam de Jesus. Eram tão crianças, mas entendiam coisas que nem a gente entendia. Eram crianças muito especiais. Eram muito inteligentes e queriam passar o que aprendiam na igreja”.
– Agressão, abuso e incêndio.
“Eu não acredito, porque eu morava na casa junto com ele. Se ele fosse espancar, ele espancaria antes. Não precisaria de todo mundo sair de casa. Eu creio que se ele fosse abusar de alguém, ele abusaria de mim ou da outra menina, ou de outras pessoas que já moraram na casa. Qualquer pessoa, assim como eu, nunca sofreu nenhum abuso, nenhuma agressão nem nada”.
– Omissão de Juliana
“Eu não acredito que ela tenha feito e nem que tenha ficado sabendo de algo antes, até porque ela era muito mãezona, tanto para a gente como para as crianças. Eu acho que ela seria a primeira pessoa, se ficasse sabendo de alguma coisa, a falar”.
– Marcas de agressões nas crianças
“Não tinha nada disso, até porque eu tinha contato com as crianças. Eu já dei banho, eu dava comida. Sempre ajudei eles com isso e as crianças eram bem próximas da gente. Irmãos mesmo. Em momento nenhum eles tinham marcas de agressão e nem de estupro, de nada”.
– O que falaria para Georgeval e Juliana?
“A primeira coisa que eu aprendi, e que eu levo isso para a minha vida, é amar e perdoar. Se ele fez ou não, eu amaria e perdoaria do mesmo jeito. Eu os amo. Antes de serem meus pastores, para mim eles foram meus pais. Ele foi meu pai, ela foi minha mãe, e eles me ajudaram quando eu mais precisei. Nem como minha família me ajudou eles me ajudaram. eu sou grata por tudo que eles fizeram por mim, tudo que eu vi eles fazendo por outras pessoas. Eu tenho muita gratidão pela vida dos dois. A gente não pode visitar. Pelo que fiquei sabendo, somente familiares, mas eu queria muito saber e ver a pastora Juliana. O pastor também, mas ela mais por ser mais frágil e saber o quanto ela precisa da gente”.
– Voltou ao local do incêndio?
“Desde quando aconteceu o fato, eu não fui na casa. Eu ainda tenho as minhas coisas lá, que eles não liberaram para tirar. Eu também não passei em frente a casa. Eu acho que não conseguiria passar lá e nem retirar as minhas coisas”.
– Futuro?
“Primeiro, a gente entende que tudo que vivemos até aqui, foi porque Jesus estava na frente. Então a gente continua acreditando, assim como a igreja. A gente acredita em Jesus e a igreja vai continuar, porque ele foi fundada por Deus e não por homens. A minha vida não parou. Eu continuo fazendo as minhas coisas. Nem tudo, porque tem coisas que ficaram na casa. Mas eu tenho feito o que eu sempre vivi, o que eu fazia antes. Mesmo sabendo o que as crianças fazem falta e não tendo a família que tinha”.
FONTE – folhavitoria